Começos e Conversas Como Cerejas
Tudo começou em 2006, na cidade universitária de Coimbra, quando os realizadores José Miguel Ribeiro (Zé Miguel) e Jorge António (Jorge) se conheceram no júri de um festival de Cinema. Aí começaram a planear fazer uma longa-metragem juntos, passada em África e filmada em animação e em imagem real. Era Abril e a Primavera afagava as penas de um pisco-de-peito-ruivo empoleirado no ramo de um choupo. O pisco voou, o Zé Miguel e o Jorge também.
Reencontraram-se dois anos depois em Luanda quando o Instituto Camões convidou o Zé Miguel para dar um workshop sobre cinema de animação no Centro Cultural Português. Partilhou a sua experiência e paixão por esta arte com estudantes, cineastas e autores de banda desenhada angolanos. O filme que o Zé Miguel e o Jorge queriam fazer voltou a intrometer-se nas conversas deles, mas as boas ideias são fugidias e não conseguiram agarrar nenhuma. Era Fevereiro e o Verão secava a boca de um beija-flor-de-peito escarlate. O beija-flor voou atrás de uma libélula, o Zé Miguel voou para Lisboa, o Jorge ficou em Luanda bronzeado como sempre.
Em 2011, o Zé Miguel voltou ao Centro Cultural Português em Luanda, desta vez para participar num ciclo de cinema e para dar um segundo workshop. Era outra vez Verão e havia electricidade estática no ar. Foi aqui que as cerejas entraram em cena. Nós explicamos, a sabedoria popular portuguesa diz que as conversas são como as cerejas, tão saborosas que não conseguimos parar de as comer, por isso não conseguimos parar de falar. Mas voltemos ao reencontro do Zé Miguel com o Jorge. Um par de cerejas abriu-lhes a porta dos destinos quando o Jorge mostrou ao Zé Miguel uma peça de teatro que José Eduardo Agualusa tinha partilhado com ele. A peça chama-se “A caixa preta”, foi escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto, e não estava editada. Só o seria nove anos depois no livro “O terrorista elegante e outras histórias” que reúne três peças de teatro escritas pelos dois autores.
O Zé Miguel e o Jorge sentiram que morava um filme na peça de teatro. O Jorge filmaria com actores a noite descrita na peça de teatro e o Zé Miguel animaria, imagem por imagem, a viagem da protagonista pelo interior de Angola. Um filme a duas mãos. Imagem real e animação.
Nos cinco anos que decorreram entre conhecer o Jorge e aquela tarde tropical em Luanda, o Zé Miguel realizara três curtas-metragens de animação, uma delas, “Viagem a Cabo Verde” fora a sua primeira incursão cinematográfica em África, e outra “Estilhaços” uma história autobiográfica sobre o stress pós-traumático de guerra.
Mas quem são estas pessoas? O Zé Miguel, o Jorge, o José Eduardo Agualusa e o Mia Couto? O Zé Miguel é um dos mais prestigiados realizadores do cinema português contemporâneo, é português e vive no norte de Portugal, perto do Porto. O Jorge António é um realizador de cinema de imagem real, português, mas vive em Luanda há mais de 25 anos, é também o produtor da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. O José Eduardo Agualusa é um escritor angolano. O Mia Couto é um escritor moçambicano. Ambos são escritores multipremiados e os seus romances estão traduzidos em dezenas de línguas. Já ouviram peças de piano tocadas em simultâneo por dois pianistas no mesmo piano? É isso mesmo, mas o piano do José Eduardo Agualusa e do Mia Couto toca histórias, escritas a quatro mãos e dois corações. Foi assim que em 2010 escreveram “A caixa preta”.
Se tivesse sido Mozart a escrever a peça de teatro provavelmente ter-lhe-ia chamado “Sonata for Piano, Four Hands, in A Major”, em que o A corresponde à escala em lá maior, mas o A de “A caixa preta” grita a plenos pulmões que é o A de África.
Então o argumento de NAYOLA começou com esta peça de teatro? Talvez sim ou talvez ainda haja mais surpresas. As cerejas são frutas cheias de segredos e têm duas amigas confidentes, as romãs e as mangas que estão a caminho de entrar neste livro, mas elas são muito vagarosas, vêm a jiboiar como se diz em África.
Em 1999, José Eduardo Agualusa publicou o conto “Eles não são como nós” no livro de contos “Fronteiras Perdidas, contos para viajar”.
“Eles não são como nós” é um conto-semente, daqueles que hibernam na imaginação dos escritores, e que um belo dia despertam. O conto-semente germinou na ilha de Moçambique, uma pequena e bela ilha de origem coralina, situada na província de Nampula, na região norte de Moçambique, Património Histórico da Humanidade pela UNESCO. O sopro de calor humano que o conto-semente precisou para germinar foi o convite da companhia Trigo Limpo – Teatro ACERT para José Eduardo Agualusa e Mia Couto escreverem uma peça para abrir o 16º Festival Internacional de Teatro da ACERT em 30 de Novembro de 2010, em Tondela, na região centro de Portugal. Assim, depois de onze anos de hibernação, o conto-semente “Eles não são como nós” germinou com ganas de palco na peça de teatro “A caixa preta”.
Por isso, a linha temporal de NAYOLA iniciou-se com o conto “Eles não são como nós” escrito por José Eduardo Agualusa em 1999, que inspirou a peça de teatro “A caixa preta” escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto em 2010, na qual viria a ser baseado o argumento de NAYOLA escrito por Virgílio Almeida em 2018. As raízes do argumento de NAYOLA são literárias e das artes performativas.
Seguindo em frente, jiboiando.
O que foi “seguir em frente” neste filme? Pergunta com respostas diferentes para cada filme, mas sempre morosas e com imprevistos, períodos de estagnação e de júbilo, avanços e recuos, encontros e desencontros, inversões de marcha, ziguezagues, crescer para outras geografias, ganhar Mundo, reunir competências, encontrar parceiros, buscar financiamentos, muito trabalho, talento e resiliência, e sobretudo encontrar a alma do filme, e depois protegê-la como a um ser único e precioso, reunir as pessoas certas e acarinhá-las. As pessoas são sempre o mais importante de tudo.
O Zé Miguel partilhou com Ana Carina, a sua colega produtora na Praça Filmes, localizada em Montemor-o-Novo no sul de Portugal, a sua vontade de desenvolver com Jorge uma longa-metragem com um argumento baseado na peça de teatro escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto. A aventura levá-los-ia a Angola. O rosto de Ana Carina encheu-se de sardas a sorrirem. As romãs entraram aqui (1) 🙂
Em Junho de 2012, o Zé Miguel, o Jorge e a Ana Carina convidaram-me (Virgílio) para escrever o argumento. Senti-me muito feliz por participar numa aventura deste calibre, mas não eram essas as razões principais para eu abraçar este projecto.
O Zé Miguel foi a primeira e a principal razão. Eu já tinha escrito para ele os argumentos de quatro curtas-metragens: “A suspeita”; “Passeio de domingo”; “Dodu – o rapaz de cartão” e “Papel de Natal”. Havia quinze anos de amizade, colaborações e muita cumplicidade entre nós, as nossas filhas e filhos tinham crescido a ver os nossos filmes.
Não conhecia o Jorge, foi a NAYOLA que nos juntou. Ele foi um íman agregador no filme, um facilitador – como se diz agora -, imprescindível, foi a acendalha inicial e o elo de ligação permanente com Angola. Tornámo-nos amigos. Mais tarde, escrevi a versão de rodagem do argumento do filme dele “A ilha dos cães”, baseado no livro “Senhores do areal” de Henrique Abranches, um escritor angolano.
A segunda razão foram os meus laços de sangue angolano. Nos finais do século XIX, os meus bisavós paternos velejaram num caíque, um pequeno barco de navegação costeira com apenas dois mastros, bordejando ao longo da costa ocidental de África até chegarem à baía de Angra do Negro, a dezoito quilómetros do Deserto do Namibe. Aí se fixaram, aí nasceram os meus avós paternos e depois o meu pai, aí eu passei um ano surpreendente da minha infância. Só voltei a Angola em adulto, entre 2006 (quatro anos após o fim da Guerra Civil Angolana) e 2009, para colaborar em cursos de formação organizados pela Universidade Agostinho Neto e o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento.
No início de 2013, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) abriu o seu primeiro concurso de apoio ao desenvolvimento de longas-metragens de animação. Tínhamos uma candidatura para preparar num semestre com o objectivo de conseguir financiamento para desenvolver o projecto. Não havia tempo a perder.
Fechamo-nos numa “bolha criativa”. Em Lisboa, eu li e reli, anotei e reanotei, o conto “Eles não são como nós” e a peça de teatro “A caixa preta”. Foram as minhas duas pernas durante muitas semanas. Sabia que me iriam levar a algures, mas não imaginava onde.
Depois chegou a hora de nos juntarmos os quatro, Zé Miguel, Jorge, eu e a Ana Carina.
A primeira residência artística foi em Dezembro de 2013 no Convento da Saudação, um antigo convento de monjas dominicanas localizado em Montemor-o-Novo que é actualmente uma estrutura transdisciplinar chamada Espaço do Tempo que alberga um extenso programa de residências artísticas. Estavam 5 graus, muito frio para os nossos padrões do sul da Europa. O Zé Miguel mostrou-nos os primeiros esboços de personagens pintadas em aguarelas.
Criámos os documentos necessários para formalizar a candidatura ao concurso de apoio ao desenvolvimento de longas-metragens de animação ao ICA:
– uma sinopse
– a caracterização das personagens principais
– um dossier gráfico com propostas para as personagens e para os ambientes
– declarações de intenções dos autores sobre o tema e a abordagem propostos, sua importância, originalidade e adequação à linguagem cinematográfica
– conceito de produção
– plano de desenvolvimento do projecto e respectiva calendarização
– diligências previstas para captar co-financiamentos
– orçamento.
Esperem só um segundo, tiniu o sino do convento, temos visitas. Sentimos as presenças do Einstein (2), do Jean-Luc Godard (3) e da Susan Cain (4). Aparecem quando estamos exaustos, quando os caminhos que escolhemos nos levam a becos sem saída, quando somos tentados por visões espectaculares ou quando o lanche é pão de trigo cozido em forno de lenha, queijo curado de ovelha, compota de abóbora e chá de erva-príncipe.
O Einstein é um falso calmo, por dentro ferve de curiosidade sobre tudo. Gosta de fazer travessuras. Godard é comunicativo, desafiador, adora debates e às vezes é chocantemente espontâneo. A Susan é introvertida e ponderada. Costuma vir disfarçada de ovelha vestida com uma pele de lobo. Einstein caminha por entre os desenhos do Zé Miguel espalhados no chão da sala, analisando-os curioso. Susan cheira o aroma do chá de erva-príncipe que se escapa do bule. Godard desliza a ponta dos dedos de uma mão sobre uma sequência de palavras escritas numa folha de papel cenário colada numa parede: minas, civis mutilados, crianças-soldado, campo de refugiados. Einstein comenta com Susan que talento é 1% de inspiração e 99% de trabalho duro. Susan replica que a perseverança não é glamorosa e que tendemos a idolatrar o 1% de inspiração, apesar de a aptidão mais decisiva ser os 99% de trabalho. Suspiram os dois. Godard provoca-nos, só 5% a 10% do cinema deve ser espectacular. Deixamos de os pressentir, o Virgílio anotou à pressa, num guardanapo de papel, o alerta de Godard sobre os filmes de estardalhaço visual.
Saímos do convento divagando sobre o género cinematográfico do filme e fomos apanhar romãs. As romãzeiras estavam a adivinhar o tipo de animação que o Zé Miguel ia usar. Tradicional, volumes, 3D? Eu também…, mas essa resposta demoraria a chegar.
(1) O logótipo da Praça Filmes, https://pracafilmes.pt/pt, é uma romã, cultivada para germinar e dar filmes a saborear.(2) Albert Einstein German (1879-1955) - físico teórico alemão fundador da teoria da relatividade.(3) Jean-Luc Godard (1930-2022) - cineasta, argumentista e crítico de cinema franco-suíço.(4) Susan Horowitz Cain (nascida em 1968) - uma escritora e palestrante americana. Autora do livro Quiet: The Power of Introverts in a World That Can't Stop Talking, que argumenta que a cultura ocidental moderna não entende e subestima as características e capacidades das pessoas introvertidas.
Começos e Conversas Como Cerejas
Tudo começou em 2006, na cidade universitária de Coimbra, quando os realizadores José Miguel Ribeiro (Zé Miguel) e Jorge António (Jorge) se conheceram no júri de um festival de Cinema. Aí começaram a planear fazer uma longa-metragem juntos, passada em África e filmada em animação e em imagem real. Era Abril e a Primavera afagava as penas de um pisco-de-peito-ruivo empoleirado no ramo de um choupo. O pisco voou, o Zé Miguel e o Jorge também.
Reencontraram-se dois anos depois em Luanda quando o Instituto Camões convidou o Zé Miguel para dar um workshop sobre cinema de animação no Centro Cultural Português. Partilhou a sua experiência e paixão por esta arte com estudantes, cineastas e autores de banda desenhada angolanos. O filme que o Zé Miguel e o Jorge queriam fazer voltou a intrometer-se nas conversas deles, mas as boas ideias são fugidias e não conseguiram agarrar nenhuma. Era Fevereiro e o Verão secava a boca de um beija-flor-de-peito escarlate. O beija-flor voou atrás de uma libélula, o Zé Miguel voou para Lisboa, o Jorge ficou em Luanda bronzeado como sempre.
Em 2011, o Zé Miguel voltou ao Centro Cultural Português em Luanda, desta vez para participar num ciclo de cinema e para dar um segundo workshop. Era outra vez Verão e havia electricidade estática no ar. Foi aqui que as cerejas entraram em cena. Nós explicamos, a sabedoria popular portuguesa diz que as conversas são como as cerejas, tão saborosas que não conseguimos parar de as comer, por isso não conseguimos parar de falar. Mas voltemos ao reencontro do Zé Miguel com o Jorge. Um par de cerejas abriu-lhes a porta dos destinos quando o Jorge mostrou ao Zé Miguel uma peça de teatro que José Eduardo Agualusa tinha partilhado com ele. A peça chama-se “A caixa preta”, foi escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto, e não estava editada. Só o seria nove anos depois no livro “O terrorista elegante e outras histórias” que reúne três peças de teatro escritas pelos dois autores.
O Zé Miguel e o Jorge sentiram que morava um filme na peça de teatro. O Jorge filmaria com actores a noite descrita na peça de teatro e o Zé Miguel animaria, imagem por imagem, a viagem da protagonista pelo interior de Angola. Um filme a duas mãos. Imagem real e animação.
Nos cinco anos que decorreram entre conhecer o Jorge e aquela tarde tropical em Luanda, o Zé Miguel realizara três curtas-metragens de animação, uma delas, “Viagem a Cabo Verde” fora a sua primeira incursão cinematográfica em África, e outra “Estilhaços” uma história autobiográfica sobre o stress pós-traumático de guerra.
Mas quem são estas pessoas? O Zé Miguel, o Jorge, o José Eduardo Agualusa e o Mia Couto? O Zé Miguel é um dos mais prestigiados realizadores do cinema português contemporâneo, é português e vive no norte de Portugal, perto do Porto. O Jorge António é um realizador de cinema de imagem real, português, mas vive em Luanda há mais de 25 anos, é também o produtor da Companhia de Dança Contemporânea de Angola. O José Eduardo Agualusa é um escritor angolano. O Mia Couto é um escritor moçambicano. Ambos são escritores multipremiados e os seus romances estão traduzidos em dezenas de línguas. Já ouviram peças de piano tocadas em simultâneo por dois pianistas no mesmo piano? É isso mesmo, mas o piano do José Eduardo Agualusa e do Mia Couto toca histórias, escritas a quatro mãos e dois corações. Foi assim que em 2010 escreveram “A caixa preta”.
Se tivesse sido Mozart a escrever a peça de teatro provavelmente ter-lhe-ia chamado “Sonata for Piano, Four Hands, in A Major”, em que o A corresponde à escala em lá maior, mas o A de “A caixa preta” grita a plenos pulmões que é o A de África.
Então o argumento de NAYOLA começou com esta peça de teatro? Talvez sim ou talvez ainda haja mais surpresas. As cerejas são frutas cheias de segredos e têm duas amigas confidentes, as romãs e as mangas que estão a caminho de entrar neste livro, mas elas são muito vagarosas, vêm a jiboiar como se diz em África.
Em 1999, José Eduardo Agualusa publicou o conto “Eles não são como nós” no livro de contos “Fronteiras Perdidas, contos para viajar”.
“Eles não são como nós” é um conto-semente, daqueles que hibernam na imaginação dos escritores, e que um belo dia despertam. O conto-semente germinou na ilha de Moçambique, uma pequena e bela ilha de origem coralina, situada na província de Nampula, na região norte de Moçambique, Património Histórico da Humanidade pela UNESCO. O sopro de calor humano que o conto-semente precisou para germinar foi o convite da companhia Trigo Limpo – Teatro ACERT para José Eduardo Agualusa e Mia Couto escreverem uma peça para abrir o 16º Festival Internacional de Teatro da ACERT em 30 de Novembro de 2010, em Tondela, na região centro de Portugal. Assim, depois de onze anos de hibernação, o conto-semente “Eles não são como nós” germinou com ganas de palco na peça de teatro “A caixa preta”.
Por isso, a linha temporal de NAYOLA iniciou-se com o conto “Eles não são como nós” escrito por José Eduardo Agualusa em 1999, que inspirou a peça de teatro “A caixa preta” escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto em 2010, na qual viria a ser baseado o argumento de NAYOLA escrito por Virgílio Almeida em 2018. As raízes do argumento de NAYOLA são literárias e das artes performativas.
Seguindo em frente, jiboiando.
O que foi “seguir em frente” neste filme? Pergunta com respostas diferentes para cada filme, mas sempre morosas e com imprevistos, períodos de estagnação e de júbilo, avanços e recuos, encontros e desencontros, inversões de marcha, ziguezagues, crescer para outras geografias, ganhar Mundo, reunir competências, encontrar parceiros, buscar financiamentos, muito trabalho, talento e resiliência, e sobretudo encontrar a alma do filme, e depois protegê-la como a um ser único e precioso, reunir as pessoas certas e acarinhá-las. As pessoas são sempre o mais importante de tudo.
O Zé Miguel partilhou com Ana Carina, a sua colega produtora na Praça Filmes, localizada em Montemor-o-Novo no sul de Portugal, a sua vontade de desenvolver com Jorge uma longa-metragem com um argumento baseado na peça de teatro escrita por José Eduardo Agualusa e Mia Couto. A aventura levá-los-ia a Angola. O rosto de Ana Carina encheu-se de sardas a sorrirem. As romãs entraram aqui (1) 🙂
Em Junho de 2012, o Zé Miguel, o Jorge e a Ana Carina convidaram-me (Virgílio) para escrever o argumento. Senti-me muito feliz por participar numa aventura deste calibre, mas não eram essas as razões principais para eu abraçar este projecto.
O Zé Miguel foi a primeira e a principal razão. Eu já tinha escrito para ele os argumentos de quatro curtas-metragens: “A suspeita”; “Passeio de domingo”; “Dodu – o rapaz de cartão” e “Papel de Natal”. Havia quinze anos de amizade, colaborações e muita cumplicidade entre nós, as nossas filhas e filhos tinham crescido a ver os nossos filmes.
Não conhecia o Jorge, foi a NAYOLA que nos juntou. Ele foi um íman agregador no filme, um facilitador – como se diz agora -, imprescindível, foi a acendalha inicial e o elo de ligação permanente com Angola. Tornámo-nos amigos. Mais tarde, escrevi a versão de rodagem do argumento do filme dele “A ilha dos cães”, baseado no livro “Senhores do areal” de Henrique Abranches, um escritor angolano.
A segunda razão foram os meus laços de sangue angolano. Nos finais do século XIX, os meus bisavós paternos velejaram num caíque, um pequeno barco de navegação costeira com apenas dois mastros, bordejando ao longo da costa ocidental de África até chegarem à baía de Angra do Negro, a dezoito quilómetros do Deserto do Namibe. Aí se fixaram, aí nasceram os meus avós paternos e depois o meu pai, aí eu passei um ano surpreendente da minha infância. Só voltei a Angola em adulto, entre 2006 (quatro anos após o fim da Guerra Civil Angolana) e 2009, para colaborar em cursos de formação organizados pela Universidade Agostinho Neto e o Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento.
No início de 2013, o Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) abriu o seu primeiro concurso de apoio ao desenvolvimento de longas-metragens de animação. Tínhamos uma candidatura para preparar num semestre com o objectivo de conseguir financiamento para desenvolver o projecto. Não havia tempo a perder.
Fechamo-nos numa “bolha criativa”. Em Lisboa, eu li e reli, anotei e reanotei, o conto “Eles não são como nós” e a peça de teatro “A caixa preta”. Foram as minhas duas pernas durante muitas semanas. Sabia que me iriam levar a algures, mas não imaginava onde.
Depois chegou a hora de nos juntarmos os quatro, Zé Miguel, Jorge, eu e a Ana Carina.
A primeira residência artística foi em Dezembro de 2013 no Convento da Saudação, um antigo convento de monjas dominicanas localizado em Montemor-o-Novo que é actualmente uma estrutura transdisciplinar chamada Espaço do Tempo que alberga um extenso programa de residências artísticas. Estavam 5 graus, muito frio para os nossos padrões do sul da Europa. O Zé Miguel mostrou-nos os primeiros esboços de personagens pintadas em aguarelas.
Criámos os documentos necessários para formalizar a candidatura ao concurso de apoio ao desenvolvimento de longas-metragens de animação ao ICA:
– uma sinopse
– a caracterização das personagens principais
– um dossier gráfico com propostas para as personagens e para os ambientes
– declarações de intenções dos autores sobre o tema e a abordagem propostos, sua importância, originalidade e adequação à linguagem cinematográfica
– conceito de produção
– plano de desenvolvimento do projecto e respectiva calendarização
– diligências previstas para captar co-financiamentos
– orçamento.
Esperem só um segundo, tiniu o sino do convento, temos visitas. Sentimos as presenças do Einstein (2), do Jean-Luc Godard (3) e da Susan Cain (4). Aparecem quando estamos exaustos, quando os caminhos que escolhemos nos levam a becos sem saída, quando somos tentados por visões espectaculares ou quando o lanche é pão de trigo cozido em forno de lenha, queijo curado de ovelha, compota de abóbora e chá de erva-príncipe.
O Einstein é um falso calmo, por dentro ferve de curiosidade sobre tudo. Gosta de fazer travessuras. Godard é comunicativo, desafiador, adora debates e às vezes é chocantemente espontâneo. A Susan é introvertida e ponderada. Costuma vir disfarçada de ovelha vestida com uma pele de lobo. Einstein caminha por entre os desenhos do Zé Miguel espalhados no chão da sala, analisando-os curioso. Susan cheira o aroma do chá de erva-príncipe que se escapa do bule. Godard desliza a ponta dos dedos de uma mão sobre uma sequência de palavras escritas numa folha de papel cenário colada numa parede: minas, civis mutilados, crianças-soldado, campo de refugiados. Einstein comenta com Susan que talento é 1% de inspiração e 99% de trabalho duro. Susan replica que a perseverança não é glamorosa e que tendemos a idolatrar o 1% de inspiração, apesar de a aptidão mais decisiva ser os 99% de trabalho. Suspiram os dois. Godard provoca-nos, só 5% a 10% do cinema deve ser espectacular. Deixamos de os pressentir, o Virgílio anotou à pressa, num guardanapo de papel, o alerta de Godard sobre os filmes de estardalhaço visual.
Saímos do convento divagando sobre o género cinematográfico do filme e fomos apanhar romãs. As romãzeiras estavam a adivinhar o tipo de animação que o Zé Miguel ia usar. Tradicional, volumes, 3D? Eu também…, mas essa resposta demoraria a chegar.
(1) O logótipo da Praça Filmes, https://pracafilmes.pt/pt, é uma romã, cultivada para germinar e dar filmes a saborear. (2) Albert Einstein German (1879-1955) - físico teórico alemão fundador da teoria da relatividade. (3) Jean-Luc Godard (1930-2022) - cineasta, argumentista e crítico de cinema franco-suíço. (4) Susan Horowitz Cain (nascida em 1968) - uma escritora e palestrante americana. Autora do livro Quiet: The Power of Introverts in a World That Can't Stop Talking, que argumenta que a cultura ocidental moderna não entende e subestima as características e capacidades das pessoas introvertidas.